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Debate: As veias reabertas da América Latina

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Cenário histórico de uma série de conflitos políticos e sociais, especialmente a partir de experiências ditatoriais, a América Latina volta aos holofotes em 2019 com uma explosão de insurreições populares combatendo governos e ideologias que colocam em risco a dignidade humana e comprometem a manutenção de democracias com um nível razoável de consolidação na região.

 

Exemplos não faltam. Esse ano, milhões de pessoas foram às ruas protestar no Chile, na Bolívia, na Venezuela, no Equador e, mais recentemente, na Colômbia. Apesar das intensas manifestações populares, alguns questionamentos se impõem: quais tipos de interesse estão, de fato, relacionados estes eventos no nosso continente? Mudanças significativas no cenário podem ser promovidas com os atos?

 

Para analisar o quadro, o programa Faixa Livre convocou o professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) Bernardo Kocher, o docente de Ciências Políticas do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (Irid) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Eduardo Martins e o presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Nildo Ouriques.

 

Bernardo Kocher

Bernardo Kocher

Promovidas em sua maioria por estudantes e movimentos sociais, as rebeliões latino-americanas contam, em sua quase totalidade, com um componente comum: o ataque a políticas neoliberais que fragilizam o modo de vida das sociedades, oferecem as empresas estatais à ânsia do capital estrangeiro e ampliam o abismo da desigualdade existente nos países.

 

Ainda que a orientação ideológica dos protestos atuais traga pautas consideradas progressistas, o início desses eventos se deu justamente no nosso país, nas passeatas que amplificaram o clima de descontentamento e levaram à saída do PT do Governo Federal.

 

“O marco é a direita que foi para as ruas no Brasil no impeachment da Dilma e estamos vendo talvez uma reação a esse movimento. Chamo essas manifestações de conservadoras no bom sentido porque elas querem conservar direitos, mas esses direitos estão sendo perdidos pela mudança do padrão tecnológico, de produção e pelas opções que são feitas internamente por um setor das nossas classes materialmente dirigentes que quer diminuir custos para manter a competitividade. Esse é um processo doloroso de ajuste a uma nova onda liberal, com a preservação de alguns poucos direitos, mas as manifestações não apontam uma alternativa econômica. É uma critica ao neoliberalismo e ponto”, disse Kocher, comparando os eventos a outro movimento ocorrido na Ásia.

 

“Os protestos não dizem ao socialismo, ao desenvolvimentismo, há uma carência de orientação, com muitos jovens participando. Eles parecem um pouco com a primavera árabe, há um abismo entre as necessidades trazidas pelas manifestações e a realidade, a possibilidade de conseguir alcançar um logro. Vejo que, apesar de ser um avanço político, o povo na rua é sempre positivo, está faltando uma organicidade política, ideológica, de orientar um caminho. As manifestações são bem-vindas, mas ainda não é uma derrota ao neoliberalismo”, prosseguiu.

 

Ontem (21), a Colômbia juntou-se ao grupo de países com rebeliões populares quando uma multidão formada por integrantes de sindicatos, indígenas e ambientalistas realizou uma grave geral e caminhou pelas principais cidades do país rechaçando medidas como as reformas trabalhista e previdenciária patrocinadas pelo governo de Iván Duque.

 

As limitações nas marchas do povo citadas pelo professor da UFF se contrapõem a uma derrocada das políticas de integração nacional promovidas pelos neoliberais. A diretriz protecionista imposta especialmente pelos Estados Unidos vem promovendo uma mudança profunda nas relações entre os países.

 

Nildo Ouriques

Nildo Ouriques

“Estamos entrando em uma era contrarrevolucionária e revolucionária ao mesmo tempo, e acho que a dimensão dessas lutas sociais revela, de fato, uma presença da luta de classes muito profunda. A região vive dois movimentos profundos, um é o do esgotamento da globalização neoliberal. Isso faz com que esse neoliberalismo que volta não tenha fôlego. Por exemplo, há duas tendências profundas na economia mundial que podemos apontar. Uma é que o comércio internacional perde fortemente o dinamismo e a capacidade de impulsionar o crescimento econômico”, ressaltou Martins.

 

“Outro fator também é a perda de força de fluxos internacionais de capital. Portanto, o neoliberalismo ao associar essa realidade à política de austeridade e de elevação da super exploração do trabalho, não gera nenhuma expectativa de desenvolvimento das forças produtivas”, enumerou.

 

Aliás, a crise daquela que já foi a principal potência hegemônica mundial e atualmente passa a dividir o protagonismo com a China intensifica as manifestações na América do Sul, visto que o governo de Donald Trump ainda exerce forte influência no continente para evitar uma aproximação dos vizinhos ao país asiático.

 

“Os Estados Unidos que foi absolutamente dominante durante grande parte do século XX, perde força inclusive naquilo que considera ser seu espaço vital, seu pátio que é a América Latina. A América Latina tem desenvolvido relações com a China e a Rússia que têm questionado profundamente esse papel protagônico dos Estados Unidos. A região está enfrentando uma luta bastante profunda entre blocos de poder e que vai colocá-la em contexto de caos sistêmico”, previu o cientista político, apontando o crescimento dos Brics.

 

Um fato que pode acirrar ainda mais o clima de conflitos, na opinião de Nildo Ouriques, é a libertação do ex-presidente Lula. O político do PT, além de potencializar a polarização, carrega em seu discurso um suposto ‘pecado original’, explorado com maestria pela oposição ao partido.

 

“Se encerra na América Latina o ciclo da ingenuidade política. Todos aqueles que querem governos terão agora de discutir poder, que é o que a direita está fazendo há mais tempo. O que se chamou aqui de ciclo progressista, não classifico de esquerda. O Lula não é um homem de esquerda, é autodefinido liberal. Esse ciclo progressista está completamente esgotado e mostrou-se sua impotência, e essa crise que se abate tem condicionamentos globais, mas há uma alteração no capitalismo dependente latino-americano que chamo de capitalismo dependente rentístico”, comentou.

 

Carlos Eduardo Martins

Carlos Eduardo Martins

“Não há antecedentes na América Latina com circunstâncias como essas, que é ingenuidade política, com essas andanças do Lula para reproduzir as hierarquias morais em um discurso organizado pela hierarquia moral, não pela conquista do poder. Esse ciclo se esgotou para sempre. Se coloca para a esquerda que ela tem de amadurecer em um curto espaço de tempo e superar essa ingenuidade que a trouxe até aqui”, continuou o presidente do IELA.

 

A busca pelo ideal democrático que se estabeleceu no continente desde o fim das ditaduras militares em países como o Brasil, o Chile e a Argentina, no último século, tem de ser deixada de lado para o docente de História Contemporânea.

 

Kocher sentenciou que o desejo utópico da criação de um regime genuinamente popular e igualitário socialmente tem feito as forças progressistas perderem espaço na disputa pela institucionalidade.

 

“A gente depositou esperanças na tal da democracia. Jogaram muitas fichas no funcionamento dela. Durante as últimas duas décadas, até que o ciclo das commodities deu alguns direitos, mas estava por trás sendo construída também uma parede imensa que é essa direita fascista que se desenvolveu. Não se pode ter ilusões e comprar a democracia pelo valor de face, pelo menos essa democracia parlamentar que se apresenta, a democracia do dinheiro”, citou.

 

“Algumas portas se abrem para alguns candidatos, mas tem gente na esquerda que investe. A democracia é uma prática social concreta. Então a primeira coisa é romper com a democracia estabelecida, criar outras democracias e partir para cima nos argumentos, nas contestações, e não no investimento de ilusões e de vitórias eleitorais parciais”, completou o professor.

 

Ouça o debate na íntegra:

 

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