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Editorial – 23.11.2020

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Eu estava pensando no fim de semana em como conduziria o editorial de hoje, mas confesso que desisti de escrever um texto a respeito daquele crime asqueroso cometido na última quinta-feira (19), véspera do Dia da Consciência Negra, a execução por espancamento de João Alberto Silveira Freitas, homem negro, no estacionamento do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Desisti porque a revolta que tomou conta de mim produziria um artigo repleto de palavras não muito agradáveis para este nosso espaço. Eu preferi então, reproduzir o texto mais ponderado escrito pela jornalista Dorrit Harazim e publicado na edição de ontem do jornal O Globo, com o título de “O Brasil tem caráter?”

 

Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, escreveu Bertolt Brecht às vésperas da Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a crimes do Terceiro Reich que apenas pressentia. A extensão do horror só ficou explicitada quando os campos de concentração foram escancarados. E fotografados. Naquele tempo, 75 anos atrás, o telefone celular ainda estava longe de fazer parte da mão humana. Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a realidade parece só existir se houver seu comprovante instantâneo, de preferência com imagem em movimento. Um grande salto de engenhosidade, progresso tecnológico, totem de um futuro sem fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o próprio bípede humano, ainda tão imperfeito e cego.

 

O assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas na garagem de um supermercado Carrefour gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer obscurecido. Só deixou de depender de versões dissonantes, querelas circunstanciais ou imprecisas, porque alguém gravou a cena esclarecendo a natureza do crime pelo celular. Assistimos assim a um assassinato a sangue quente, primitivo, sem a intermediação sequer de uma arma. O homem negro já subjugado foi espancado na cabeça e rosto até lhe faltar vida. Sua morte teve por testemunha a esposa impedida de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários do Carrefour, além da plateia global que foi se inteirando do fato. No chão da garagem respingada de sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de dedo.

 

Não foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi? Na pergunta está embutido o horror maior: apesar de saberem que estavam sendo filmados, os dois matadores profissionais (um PM e um segurança, ambos brancos) não interromperam o ato. “Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, repetiria Brecht sobre o crime contra a raça negra que, de tanto sustentar a construção do Brasil, se tornou invisível — mesmo quando visível.

 

O Brasil acabou com a escravidão e adentrou a pós-abolição sem criar leis claramente segregacionistas. Mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com os negros, contou em entrevista à BBC, anos atrás, a historiadora Luciana Brito, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Segundo a professora, “a educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito tornou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível… Você entra numa loja e não é expulso, mas a vendedora a ignora. Quem não a ignora é o segurança. Até o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o ‘negro de bem’.

 

As primeiras reações do Brasil oficial que despertou na sexta feira para a morte do soldador João Alberto foram as esperadas. Era o Dia da Consciência Negra, e o presidente da República estreou logo cedo elogiando Pelé. Silenciou sobre o crime que, no final da tarde, levaria o Brasil real às ruas. A Brigada Militar informou que o policial assassino é apenas “PM temporário” e que a corporação é “uma instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade”; para Roberta Bertoldo, delegada do caso no 2º Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre, “não há indícios de racismo até o momento”. Para o vice Hamilton Mourão, “no Brasil, não existe racismo”.

 

O Carrefour se manifestou já de madrugada, até porque não poderia continuar dormindo. Tem no currículo, em dobradinha com os serviços de segurança que contrata, o espancamento de um deficiente físico e de outro cliente negro suspeito de estar assaltando o próprio carro, além de controlar a ida ao banheiro de funcionárias, e de ter mantido encoberto por guarda-sóis e caixotes, durante quatro horas, o corpo de um promotor que morrera numa unidade do Recife. Em nota, a empresa garantiu adotar “as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso” e, de início, decretou o fechamento da unidade de Porto Alegre por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago.

 

O repórter Matheus Prado, do CNN Brasil Business, ouviu dois analistas do mercado, e nenhum deles acreditava que o caso teria impacto duradouro no preço das ações do Carrefour. “Uma revolta a curto prazo, talvez”, resumiu um deles, da Guide. Bom teste para o Brasil.

 

Caráter, ou a disposição de aceitar responsabilidade pela própria vida, é a fonte da autoestima, escreveu Joan Didion num de seus notáveis ensaios. Se o conceito for aplicado também a países e suas sociedades, fica a pergunta: o Brasil tem caráter?

 

Ouça o comentário de Anderson Gomes:

 

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