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Um projeto genocida

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Por João Batista Damasceno*

 

Derrotada na 1ª Guerra Mundial, a Alemanha viveu dias tenebrosos nos anos que se seguiram. Perdeu suas fontes de renda, o carvão necessário para aquecer as casas e os fornos estavam sendo utilizados como compensação de guerra e a população jovem tinha morrido em batalha. A população era composta de mutilados e idosos. Vigia na Alemanha a ideia de que somente aqueles que tivessem finalidade na sociedade tinham o direito de viver. Esta concepção está expressa no livro Minha Luta que Hitler escreveu enquanto esteve preso de 1923 a 1925. O livro deixa explícito o projeto genocida.

 

Vivemos no mundo momento dramático. Um vírus que nossos organismos desconhecem assombra a população mundial, que pode causar insuficiência respiratória aguda. Nas pessoas sadias e com boa capacidade física, tal gripe realmente não deve causar grandes danos. Mas, mesmo sem os sintomas, estas podem infectar outras com maior debilidade física e levarem-nas ao óbito.

 

Estão na lista dos que podem morrer, se tiverem contato com o vírus, as pessoas com mais de 60 anos e as acometidas de doenças pré-existentes. Os jovens com saúde podem não desenvolver a crise respiratória, mas podem ser vetores do micro-organismo. Daí a recomendação das autoridades sanitárias de que a população busque o confinamento para evitar o contágio generalizado.

 

O agravamento da situação decorre do frágil sistema de saúde pública no Brasil, incapaz de atender a todos os que necessitem, se o mal se generalizar. Quem conhece a precariedade dos hospitais públicos, sucateados por sucessivas políticas neoliberais, tem consciência do que pode ser capaz uma infecção generalizada em pessoas debilitadas. A emenda constitucional 95, que congelou os gastos com saúde, é uma lástima.

 

O ministro da Saúde, Luiz Mandetta, em reunião com os presidentes do STF, da Câmara dos Deputados e do Senado, para a qual o presidente Jair Bolsonaro não foi convidado, traçou um quadro dramático para o Rio de Janeiro e Minas Gerais com a chegada do coronavírus, em razão da precariedade das habitações, ausência de saneamento, desnutrição, débil condição de transporte de massa e precariedade hospitalar. Mas, ainda assim, o presidente da República ocupou cadeia de rádio e TV para conclamar a população a voltar às ruas, por imperativo do lucro do capital a que serve.

 

Mas a conduta do presidente não é ditada pela irracionalidade. O presidente não sofre de suas faculdades mentais. Ao contrário, trata-se de opção, racionalmente elaborada, entre a vida e a lucratividade da ordem econômica. Nosso sistema de produção vê a pessoa humana com duas finalidades: produzir e consumir. Aqueles que, por suas condições de miserabilidade, não têm capacidade de dar lucro, consumindo os produtos e serviços que oferta, bem como aqueles que não têm capacidade de serem produtivos, são tratados como fardo para a ordem econômica e devem ser eliminados.

 

Neste contexto de eliminação daqueles que não são vassalos úteis da ordem produtiva ou que não tenham capacidade de consumo, um vírus que possa dizimar esta parcela da população é saudado por quem não tem compromisso com a vida humana. Para estes, o problema da Previdência Social se resolveria sem a necessidade de reforma que proporcione debate e exponha aqueles que votam contra o povo. Outros gastos igualmente seriam evitados ante a eliminação dos indesejáveis pela doença.

 

O projeto é genocida!

 

No início do século XX houve a difusão de uma corrente filosófica que dizia ter sido a civilização criada pelos fortes, inteligentes e competentes e que indivíduos como Sócrates e Cristo negaram essa concepção, valorizaram os pequeninos e propagaram um conceito que protegia os fracos e valorizava a justiça ao invés da força. Aquele conceito filosófico concebia que somente as pessoas com dons especiais tinham o direito de viver. Assim, a terra e os recursos nela existentes deveriam ser reservados aos ‘super-homens’.

 

A concepção que hoje propaga é pior que o liberalismo. Este visa assegurar os direitos de quem já os tenham, sem preocupação com quem nada tem. O pressuposto do liberalismo é que cada qual, por seus próprios, meios atinja seus objetivos, pouco importando quem possa ser atingido. Não há outra ética no nosso sistema de produção que não seja o lucro. O que os liberais não respondem é como aqueles que nada têm, que foram privados dos recursos naturais não decorrentes de trabalho, podem atingir seus objetivos. Como atingir seus ideários se foram privados dos meios? A estrutura fundiária no Brasil é emblemática. Ninguém tem condição de justificar a apropriação de latifúndios quando, na sua origem, o próprio ordenamento jurídico impedia que aqueles que nada tinham pudessem ser proprietários.

 

O impacto sobre o sistema produtivo, em razão do confinamento, pode ser minorado por politica de renda mínima. Se for garantido um programa de renda mínima para os desempregados, para os trabalhadores informais e para os trabalhadores formais que forem dispensados de suas atividades, com os racionamentos necessários, será possível manter a funcionalidade do sistema enquanto a crise perdurar. E isto implicaria apenas ínfima parcela do que é entregue mensalmente aos banqueiros, categoria a que pertence o ministro Paulo Guedes.

 

O nazismo na Alemanha foi um momento da história da humanidade no qual se testou o limite da perversidade. A filósofa Hanna Arendt o descreveu como a banalização do mal. Mas,não foram apenas os judeus que foram sacrificados. Foram igualmente eliminados os comunistas, os ciganos, os homossexuais e os opositores. Mas, antes de todos, foram eliminados aqueles que não produziam. Assim, os enfermos crônicos foram o ensaio do que se faria com outros segmentos da sociedade. Enquanto podiam produzir, todos os indesejáveis eram encaminhados para campos de trabalho forçado. A eliminação final somente ocorreu quando já não mais se mostravam úteis.

 

É preciso lembrar que parcela dos líderes religiosos na Alemanha apoiou o genocídio, mas não é de se estranhar. A divindade de certas pessoas que se dizem cristãs não morreu de doença. Foi torturada e crucificada pelo poder político e religioso. E não foi pelo Estado Romano. É preciso lembrar que Pilatos não condenou Cristo. Ao contrário, lavou as mãos e o entregou aos sacerdotes vendilhões dos templos, ávidos de lucros que haviam sido censurados.

 

Empresários gananciosos chegam a colocar na porta de seus estabelecimentos placas informando o número de pessoas que podem morrer em contraposição ao prejuízo econômico que podem suportar. Desconsideram que se trata de pais, mães, avós, avós, tios e tias, assim como outros parentes ou companheiros e companheiras que têm importância para muitos. São pessoas. A humanidade é uma comunidade em que cada vida e cada pessoa importa. Somos um todo.

 

As instituições não foram construídas para que os mais fortes sobrevivessem em detrimento do sacrifício dos mais fracos. Ao contrário, vivemos em comunidade para que as nossas relações sejam permeadas por valores que nos possibilitem auxiliar uns aos outros e que todos possamos desfrutar do resultado do trabalho social, para o qual cada um dá um tipo de contribuição.

 

Não podemos, em nome da ordem econômica e da apropriação privada, permitir que o coronavírus seja difundido, propiciando a eliminação daqueles que são tratados como inúteis para o mercado. A política genocida que já elimina pretos e pobres na periferia não pode ser estendida aos idosos e doentes. Que todos tenham vida e que a tenham em abundância!

 

* João Batista Damasceno é juiz da Associação Juízes para a Democracia

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